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Artigo: Anestesia e sua capacidade de adaptação durante a pandemia

Autores: Regiane Xavier Dias, Guilherme H. Moura, Andre Luis Ottoboni

Por conta da pandemia, o ano de 2020 está sendo marcado por muitas mudanças no sistema de saúde com impacto socioeconômico significativo. A humanidade se viu envolvida em uma situação inimaginável e os profissionais de saúde na linha de frente deste caos.

Muitas perguntas sem respostas, problemas de comunicação com impacto nas medidas governamentais e no entendimento da população. Tomadas de decisão, cuja repercussão vêm causando incertezas e ansiedades. Neste cenário conturbado em que a comunicação tem se fortalecido como um fator fundamental, nossa especialidade percebeu que o escopo e as atividades estão em constante mudança e que haveria necessidade de se reinventar.

Práticas de segurança relacionadas ao uso de equipamentos de proteção, técnicas de assepsia e preocupação com infecção hospitalar que já eram tópicos abordados constantemente pela especialidade, tornaram-se assunto indispensável durante o atendimento do paciente suspeito pela infecção Covid-19.

Contudo, profissionais cuja especialidade é voltada à interação com o paciente de forma temporária, pontual, para um determinado procedimento, foram expostos a um ambiente não tão desconhecido, mas um tanto hostil, a unidade de terapia intensiva (UTI).

Enfrentando seus medos em prol das necessidades e do propósito, os anestesistas começaram a colocar em prática o cerne da sua expertise. Em consequência da formação, os anestesistas são os profissionais que mais se aproximam dos intensivistas, tanto pelo conhecimento no cuidado de pacientes críticos, quanto para a realização de procedimentos, como intubação e manejo de dispositivos vasculares.

Mesmo com todas essas semelhanças, o ambiente não era totalmente confortável. Muitos pacientes graves, o medo da doença em si, atenção redobrada, manejos dos quais não estávamos habituados, porém, independente de todas essas dificuldades, tínhamos a certeza de que a vontade, perseverança e resiliência iriam sobressair.

Com este espírito, iniciamos os trabalhos nas UTIs de diversos hospitais, tanto naqueles em que já frequentávamos o centro cirúrgico, quanto em outros que precisavam da nossa ajuda. Na maior parte das vezes, fomos recebidos por profissionais médicos que nos apoiaram e por uma equipe multiprofissional solícita. Todas as adversidades foram ultrapassadas em conjunto e se tínhamos alguma dúvida sobre a força do trabalho em equipe, esta desvaneceu ao longo destes meses de convivência.

As práticas de segurança tão protocolares deixaram de ser um fator de desacordo e o contato com o paciente e seus familiares efêmero, colocando-nos diante de um papel primordial como interlocutores, principalmente em um momento em que empatia e compaixão nunca foram tão valorosos.

Em um primeiro momento, tivemos a percepção que estávamos entregando muito frente a tanto risco e hesitação. Não fazemos ou fazíamos ideia do ganho pessoal e espiritual que tivemos a oportunidade de vivenciar. Questões técnicas, não técnicas, informação, comunicação, trabalho em equipe, foco no paciente e, sobretudo, o cuidado pessoal foram alguns dos elementos em que todos, cujo cerne do trabalho é a qualidade e segurança, estiveram envolvidos no momento mais crucial da pandemia.

A Segurança como uma das dimensões mais importantes da Qualidade mobilizou diversas áreas dos hospitais, incluindo a Anestesia, com a finalidade de que protocolos sobre fluxo operacional, utilização de EPIs, manejos ventilatório e de via aérea fossem constantemente atualizados e divulgados em canais de comunicação efetivos.

Contudo, não eram apenas questões técnicas, da rotina profissional que precisávamos ter atenção. Aspectos relacionados ao cuidado centrado na pessoa foram fundamentais para que pudéssemos nos sensibilizar com o outro e procurar meios de superar nossas próprias ansiedades.

Com base em todas essas premissas, imaginamos que o melhor método para compartilhar experiências, angústias e incertezas era através dos relatos dos profissionais que estiveram à frente do combate à esta pandemia.

Através de histórias emocionantes pudemos nos identificar e todo o ambiente, conflito e sentimento foram transmitidos de forma única.

Por exemplo, de acordo com o relato da dra. Ana Paula Souza Vieira dos Santos, anestesiologista há mais de 20 anos, o grande desafio era não ser controlada pelo medo. “Quando tudo isso começou, senti muito medo. O que eu faria? Na verdade, o que faríamos? Exatamente o que estamos fazendo: cuidar das pessoas. Fomos com medo misturado à coragem”.


Para a dra. Talitha Gonçalez Lelis, resiliência é uma das palavras que melhor resume o período atual. “Desafios não faltam nesses tempos na UTI: aceitar o inevitável, sentir que não desistir pode significar a vitória da vida e aprender sempre! Cada dia é um dia diferente, oscilando entre tristezas e alegrias. Penso que somos privilegiados por termos nos reinventado numa situação inédita em nossa profissão e no mundo.”


O dr. Rômulo Augusto da Silva Batista reforçou a necessidade da persistência em um cenário de dúvidas e incertezas. ”Assim seguimos, nos equilibrando nesse paradoxo da morte personificada que ora nos cobra objetividade, ora nos congela, mais por meios do que por fins, mais por um caminho, do que por um objetivo em si, mais por uma missão, do que por uma obrigação”.

Estes e tantos outros relatos que pudemos ler e ouvir, reforça o sentimento de que esta pandemia pode ter nos tirado da zona de conforto e nos incitado a superar nossas capacidades, mas acima de tudo está nos proporcionando a oportunidade de recriarmos nós mesmos e ressignificarmos nossas vidas